DOM DE SER O QUE ÉRAMOS

"Beba-me em tua fenda, engula-me em tua angústia de fluídos, que eu e tu, juntos, seremos nós..."

in   Desterro - A.R.S.

Pensávamos estar deixando de fluir tão naturalmente quanto desejávamos e, para efeito do pensar, pulsamos um fim inesperado, um fim que surpreendeu até mesmo o próprio fim. Jurara que duraríamos a eternidade de alguns anos e, pelo mesmo motivo, deixamos de ser o que éramos.

Quem pode assumir essa culpa que nem mesmo encontra espaço no corpo do texto?

Penso que estás aqui, ao lado, ainda quente em minha cama, naquele encaixe magnífico que me pego ensaiando com o vazio que deixaste. Confesso - com o orgulho nem tão ferido assim - que não preenchi teu lugar porque mantive – e mantenho – a sensação de sermos um para o outro.

Tenho a tua mão, tenho teu nariz, tenho teu olho, tua imagem, teu perfume, tua grafia, só não tenho a ti como antes. E me parece bem mais simples dizer-te do que esquecer teus dissabores.

Quando pousares teus olhos em mim, por aqui, já serei outro, já não serei este que digita essas palavras, mas um outro eu, mais alvo, mais leve, com menos lacunas. Peço que não te preocupes mais com esta imperfeição, minha e tua, estas coisas de refletir infindos e preciosos tempos de beijares esquecidos. A glória de saber um a que se possa atribuir responsabilidades é a mesma de deter-se no egoísmo de um sol irreal. Podes compreender?

Enquanto não voltas e eu não te procuro, fiquemos a fingir essa distância inconstante que se esbarra firme e indiferente nos espaços que cultivamos tolamente. Quem sabe em qualquer dia nos encontramos pelos caminhos decididamente nossos com os quais podemos contar sem saber e, para esses dias, guardo o meu eu mais manso e honesto, mas intenso e corrigido, mais breve e duradouro.

Então que fiquem os dias a deslizarem pelo calendário dessas nossas vidas apartadas, que fiquem a se amontoar nas pilhas sobre o repouso dos armários das nossas dissociações, pois ainda haverão de cessar em algum tempo.