Aos vinte e nove dias de um mês qualquer
em um ano redondo de um século que não importa
veio-me um anjo de cabelos negros
com asas douradas e um vazio nas mãos.
Disse-me, sem dizer, palavras inaudíveis
e eu pude compreender a insignificância daquele momento:
era um anjo de cabelos negros e asas douradas
era um anjo mudo, um anjo mudo
Às vinte e três horas da noite em que me apareceu um anjo,
acordei.
Pensando melhor, era um anjo de cabelos louros e asas negras.
Era um anjo de voz estridente e seios fartos
de pele branca e dedos finos
era um espetáculo imagético.
Era noite, ainda. Era um ano de boas novas,
um mês de tempos bons,
um dia de sol forte e céu azul.
A lua – clara ideia – era alta entre nuvens cinzas no teto.
Apareceu-me um anjo.
Vestido de branco, trazia, nas mãos negras, um recipiente.
Nele, duas pílulas.
Tomei-as todas as três. Abri os olhos.
Houve um momento de lucidez, mas,
logo,
submergi novamente num sono febril.
Voltou-me o anjo (o mesmo das pílulas)
Agora, porém, sem asas e sem recipientes.
Ofereceu-me seu olhar castanho e generoso,
secou o suor da minha testa convulsiva.
Era noite, ainda. E era uma cama de hospital
e era um jardim azulado pelo crepúsculo,
era um céu alaranjado perto da hora do alvorecer das coisas.
Percebi-me sozinho em casa, deitado no chão da sala
duas garrafas de uísque repousavam vazias ao lado
de um cinzeiro transbordante...
Sinais de dalila sobre o vidro da mesa de centro.
No quadro pendurado na parede, meu anjo estava imóvel
com seus cabelos dourados, negros, suas mãos invisíveis -
asas escondidas sob a inviolável ausência de asas.
Despertei. Desta vez, definitivamente.
Despertei em um sonho estranho
onde anjos me acudiam da febre de viver
e pus-me a questionar a existência de anjos
enquanto me lavavam o corpo em chagas
e não ouvi respostas daquelas mãos aduncas com
que me tiravam a consciência
e fui dormir, e fui à casa onde reside meu quarto
e fui acordar para uma vida sem sentido exato, sem anjos
e vi-me anjo no espelho da sala vazia.
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