terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Contragosto, terno e exato

“Eu era, para ela, o que, para Scarlett O'Hara, era Rhett Butler em “Gone with the Wind”. Quando todas as outras coisas não iam bem, ela lembrava que eu existia.” T.R.








Correu seus dedos pelas possíveis palavras que expressariam suas inquietudes, mas percebeu que tantas possibilidades deixavam-no confuso. Onde estaria o termo exato da sua eufórica agonia? E mais, por que essa necessidade de ser notado tornava expressa e tediosa a imagem tosca de si mesmo? Como definir o que era o rumo que conscientemente traçava?

Correu os dedos pelas teclas e ela foi surgindo, impulso a impulso, tristemente alardeada por um farfalhar de folhas na imagem outonal que fazia mentalmente: ela, com um sobretudo preto, acinturado por uma faixa de tecido da mesma cor, o jeans escuro delineando as pernas até se esconder sob o couro opaco da bota, o cabelo negro escorrido dançando endoidecido pelo vento, as mãos nos bolsos e os olhos fixos nele... Aqueles olhos possuíam um encanto quase magnético que o fazia seguir para eles, mas quando se aproximava, eles o repeliam com tanta doçura que ele não compreendia de que forma era possível sobreviver. Ela caminhava em sua direção com um sorriso Da Vinciano nos lábios vermelhos. Os passos leves nos pés de porcelana lembravam uma pequena bailarina ensaiando sob o cinza da tarde.

Gravou essa imagem com suas digitais e com o seu coração, ele a tocou. Talvez fosse a única parte palpável de tudo o que sentia. Como limitar um sentimento? Como imitar uma idealização? Não era possível passar indiferente, mas era inquestionável que apenas escrever não bastaria. Mensagens, avisos diretos e indiretos, e era silêncio o que lhe oferecia em troca. Parecia perceber que era o gatilho para disparar seu desejo. Quase sentia o cheiro da satisfação dela ao se saber desejada e importante. Mas mais do que qualquer coisa, sabia que ela disfarçava o desdém como forma de ignorar o que também sentia.

Naqueles dias de silêncio, ela pensou na vida que levava e achou que era prudente manter as aparentes escolhas como forma definitiva de ser. Acreditou verdadeiramente que a brincadeira de gente grande era a sua conquista. Pensou que todos a invejassem, que todos imaginassem a sua felicidade como algo ideal. Mas ele sabia que ela preenchia com sorrisos e palavras ácidas um vazio que, em si, só crescia. Era o álcool, eram as reuniões sociais, os colóquios irônicos e desrespeitosos que alimentavam seu ego intermitente e frágil. Chegaria o dia em que ela perceberia que não restariam alternativas sólidas às escolhas solúveis que havia feito.

Ele não era uma opção.

Em rigor, àquele tempo, desfazia-se em artifícios para envolver e manter atenções, redobrava cuidados, armadilhava carinhos e ocultava intenções. Cada parte de si tremia quando em silêncio, cada pedaço de corpo e de espírito vibrava porque sentia-se vivo. Mas não estava vivo, imaginava a vida, apenas. Havia, latente, uma necessidade de possuir, uma precisão de dizê-la sua, de sabê-la sua, mesmo que a realidade mostrasse que isso jamais aconteceria.

Ela adotou uma postura quieta, compenetrada na tentativa de manter o status que havia alcançado com pouco esforço. Fez-se mulher, fez-se companheira, amiga dos amigos, eventualmente triste – quando isso era conveniente. Ainda que seus olhos não se enganassem, ele ficava feliz por acreditar na verdade que ela validava com os silêncios. Era alegre pensar que ele havia sido promovido a um caso temporal que fora superado tranquilamente. Cavar trincheiras era a sua atividade predileta. Algumas vezes ele tropeçava, caía, ela simulava espanto e lhe oferecia a mão auxiliadora e desinteressada. Ele recusava, a contragosto.

Começaram de forma equivocada. Sobressaiu o envolvimento magnífico que toma conta dos iguais. Havia muito em comum: discos, livros, ideais, impressões. Mas, sobretudo, havia a consciência de que possuíam um saber diferente, um sentir superior. Eram horas a desenvolver conversas e ânimos profusos, a surpreender suas expectativas em diversos níveis. Passaram da conversa eventual ao contato necessário. Por diversas vezes comunicaram explicitamente seu interesse em aprofundar o que estavam construindo e o medo que surgia, também. Alguns encontros marcados, todos irrealizados, até que, em um dia incomum, a sorte fez-se forte.

Era uma noite dessas em que o ar morno pesa nos pulmões, as mãos transpiram ansiedades e o coração intrépido sucateia nossa razão. O terceiro nível de uma instituição. O som dos passos. Um sorriso que surgiu no silêncio dos olhos complacentes. Algumas palavras inseguras e o beijo definitivo. Breve. Alguns poucos minutos. Um céu cinza-alaranjado. E o som do afastamento iminente.

Daí surgiram os primeiros silêncios inesperados. As palavras foram rareando, os contatos se tornaram cada vez mais fugazes e superficiais. Por fim, duravam apenas o tempo de alguns “olás” e trocas de impressões socialmente convencionadas. Raras vezes os assuntos se chocavam em algum ponto produzindo uma pequena chispa que lembrava, brevemente, aquilo de antes.

Ele resistiu bem por bastante tempo, mas algumas vezes, quando a sua consciência se manifestava fortemente, ele retomava a presença dela na sua mente perturbada. Fruto dessas passagens eram ligações, e-mails, mensagens... Algumas vezes ela respondia, outras não se dava ao trabalho. E foi percebendo que nada poderia esperar dali, pois aquele sentimento se tornara uma estrada só de ida.

Agora ele é. Fez-se. Foi necessário. Caminha seus passos firmes e desenvolveu um jeito seu de tratar estes impulsos. Sempre que a imagem dela lhe surge, violenta, corre seus dedos pelas possíveis palavras que expressarão suas inquietudes e, embora perceba que tantas possibilidades deixam-no confuso, escreve. É o termo exato da sua eufórica tristeza. A necessidade de ser notado tornou-o entediado e tosco. Traçou o rumo que definiu conscientemente e deixou para trás o que o vento levou.

4 comentários:

Sinara Amorim Barbosa disse...

Lindo, dá vontade de devorar a leitura, precisamos tanto disso. Parabéns!!!!

Bluma S. disse...

"Cada parte de si tremia quando em silêncio, cada pedaço de corpo e de espírito vibrava porque sentia-se vivo. "

Que descrições, que texto! Me encontrei em cada parágrafo.

Estou lendo você...

Ânderlo Strwsk disse...

Grato pelos comentários. Obrigado, Sinara!


Leia com gosto, Bluma!

Danielle Amaral disse...

As palavras fogem...
No contraponto, meu coração transgride seu pulsar corriqueiro.
As emoções consomem o meu ser. Concomitantemente, elas me dominam e me libertam. Sinto-me traduzida.
O "seu escrever" transforma-se em meu silêncio aquietador!